Uma força estranha
Por César de Oliveira
No livro Cartas a um jovem poeta, o escritor tcheco Rainer Maria Rilke conversa com um rapaz iniciante na arte da escrita poética e, em um dado momento, indagado sobre a qualidade dos escritos do jovem aprendiz, ele assevera: “pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade”.
A propósito da apresentação de um clube de leitura, eu gostaria de fazer uma pequena alteração na pergunta do escritor tcheco e lançar a quem porventura me leia: você precisa ler? Sua vida seria a mesma se não fosse a contemplação das manifestações artísticas com as quais teve contato? Certamente haverá quem afirme, com indiferença, que sim, que suas existências não sofreram nem sofrem interferência de obras de arte e que respirar, comer, descansar e trabalhar lhe é suficiente. Eu perguntaria, então, o que seria destes indivíduos não fossem as personagens das histórias infantis que leram para eles; ou dos causos e lendas que ouviram de seus avós, talvez os primeiros narradores de suas vidas; ou das canções de diferentes estilos, que ouvem e dão sentido a sentimentos que os preenchem; ou, ainda, dos desenhos animados, diante dos quais passaram ou passam horas vidrados.
Vocês já devem ter percebido que estou fazendo uso de um conceito amplo de “leitura”. Não me refiro apenas a textos verbais, muito menos apenas à palavra escrita. Contudo, de um aspecto não abro mão nesta definição: ao falar de leitura, quero que tenham em mente textos – escritos, orais, visuais – que correspondam a histórias inventadas. Faço tal direcionamento porque existe, no ser humano, até mesmo nesses que se dizem indiferentes à arte, uma necessidade inata do fenômeno artístico, o qual, como disse, não se restringe às obras clássicas. Diante disso, uma pergunta se impõe, inevitável: de onde vem essa necessidade?
Alguns dirão que vem da busca por conhecimento. De fato, a expressão artística aguça nosso intelecto e nos apresenta informações relevantes sobre o mundo. Mas, para isso, não bastariam os manuais técnicos, textos jornalísticos, de filosofia, de história e de sociologia? A interrogação, portanto, permanece intacta: por que vemos filmes, porque lemos literatura, por ouvimos música, por que lemos histórias em quadrinhos? Os utilitaristas dirão que lemos porque precisamos ser aprovados nos exames vestibulares. Creio que já está mais que provado que é tranquilamente possível conseguir êxito em tais provas sem a necessidade de fruição de obras de arte. Então, por que lemos?
Lemos porque nos identificamos com as personagens das histórias que buscamos. A expressão artística diz algo de nós que talvez nem saibamos explicar com clareza. Às vezes, apenas depois do contato com ela conseguimos compreender e sistematizar algum conteúdo subjetivo que estava repercutindo em nós (medo? tristeza? ódio? alegria?). Ou seja, ela pode antecipar para nós a nossa própria verdade de determinado momento. É possível, contudo, que essa compreensão não venha, e, ainda assim, o fenômeno artístico poderá, como nenhuma outra forma discursiva, nos permitir “sentir melhor o sentimento” que nos afeta.
Em outras palavras, a obra de arte nos humaniza, colocando-nos frente a frente com os variados afetos que constituem nosso ser, que é transitivo e transitório. É por isso que é significativo para o mundo que um indivíduo leia um livro, veja um filme, aprecie uma pintura, e catalise em si mesmo e na relação com o outro o resultado dessa experiência. Quando – mais do que isso – esse indivíduo se reúne com outros para que partilhem entre si tal experiência, temos um bonito e relevante movimento de mudança na sociedade. Afinal, um mundo onde pessoas se interessam por seres puramente de linguagem, como os dos livros, é um mundo em que a força estranha cantada por Caetano Veloso possui um local privilegiado.